O astronauta japonês Soichi Noguchi registra “a grande Amazônia, no Brasil” a partir da Estação Espacial Internacional. (Foto: Reprodução)

É um cenário que, à primeira vista, parece ter saído das páginas de um romance de espionagem ou de uma distopia climática: em um remoto trecho da floresta amazônica, a cerca de 80 quilômetros ao norte de Manaus, uma dezena de torres metálicas, esguias e futuristas, injetam dióxido de carbono puro na atmosfera. Não se trata de uma arma, mas sim da maior instalação científica do planeta em uma floresta tropical, uma experiência monumental e sem precedentes que busca decifrar o enigma central da crise climática: a Amazônia nos salvará ou nos abandonará à beira do colapso ambiental?

Hipóteses extraordinárias, como a do temido “ponto de não retorno” amazônico, exigem evidências igualmente extraordinárias. É essa a premissa por trás do AmazonFace (sigla em inglês para “experimento de carbono ao ar livre”), um projeto ambicioso e de alto custo, que termina sua instalação na véspera da COP30. O experimento, orçado em R$ 260 milhões para dez anos de funcionamento, está prestes a fornecer os dados crus que confirmarão ou refutarão as projeções mais sombrias sobre o futuro do bioma.

Laboratório a céu aberto

A infraestrutura do AmazonFace é um feito de engenharia e ciência. São 96 torres de 30 metros de altura dispostas em seis anéis circulares de 30 metros de diâmetro. Três desses círculos são de intervenção, onde tubos pretos expelirão gás carbônico, elevando a concentração local em 200 partes por milhão (ppm) acima do nível atual. Isso simula a alta de emissões prevista para as próximas décadas – passando de, por exemplo, 420 ppm para 620 ppm. Os outros três círculos são áreas de controle, idênticas em infraestrutura, mas que apenas liberam ar ambiente, garantindo o rigor da metodologia científica.

“O Face é hoje talvez o maior experimento a céu aberto de mudanças climáticas do mundo,” afirma o ecólogo e meteorologista David Lapola, da Unicamp, um dos coordenadores científicos. “Ele busca entender, reduzir incertezas de uma das maiores fontes de incerteza para o futuro da Amazônia, o papel que o aumento de gás carbônico teria sobre a floresta, principalmente o efeito fisiológico direto.”

O projeto, concebido há 15 anos no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) com a participação do climatologista Carlos Nobre, é financiado primariamente pelos governos brasileiro e britânico (por meio do MetOffice), além de um aporte inicial do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Exame do Pulmão do Mundo

No coração do experimento, mais de uma centena de pesquisadores e técnicos estão envolvidos em um trabalho que o engenheiro florestal Carlos Alberto (Beto) Quesada, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e outro coordenador no Brasil, chama de “visão sistêmica, holística”.

Em quatro dias de acompanhamento da reportagem da Folha, a complexidade da coleta de dados se revela:

  • Olhar Aéreo: Câmeras fenológicas nas torres centrais captam 360 instantâneos da folhagem por dia, monitorando a floração, frutificação e a área foliar disponível para a fotossíntese. Drones complementam as observações.
  • Fotossíntese Detalhada: Cientistas, içados por quatro gruas de construção de 45 metros de altura (com braços de 50 metros), levam gôndolas até o dossel para medir a fotossíntese em folhas individuais, analisando a troca de CO2 e vapor d’água (evapotranspiração) através dos estômatos.
  • Vida Subterrânea: Escaneadores “mini-rhizotron” são inseridos no solo para monitorar o crescimento das raízes diminutas. O solo também é monitorado para avaliar o carbono estocado, com medições de CO2 e água em quatro profundidades e identificação de 315 moléculas orgânicas.
  • Crescimento e Fluxo de Vida: O crescimento das 423 espécies de árvores presentes é medido pelo método DAP (diâmetro à altura do peito) com cintas metálicas. Sensores são inseridos no xilema para medir o fluxo de seiva – 10 a 230 litros de água que sobem do solo à copa diariamente em cada árvore.
  • O Que Cai e o Que Fica: Armadilhas de serrapilheira coletam tudo que cai – folhas, frutos, insetos –, que é levado ao Inpa para catalogação e escaneamento, estimando a perda de área foliar. ‘Efeito Fertilização’

O AmazonFace se propõe a resolver a incerteza crítica sobre a capacidade da floresta de seguir atuando como um “sumidouro” de carbono. Desde os anos 1980, a Amazônia tem retirado CO2 da atmosfera, um fenômeno conhecido como efeito de fertilização por CO2, onde o aumento da disponibilidade do gás estimula o crescimento das árvores. Essa captura foi gigantesca, equivalendo, de 1980 a 2005, à emissão anual de gases-estufa de todos os veículos do planeta.
No entanto, a notícia recente não é animadora:

  • Declínio da Absorção: Um estudo de 2015, com a participação de Quesada, mostrou que a taxa de captura de carbono pela vegetação amazônica vem se desacelerando a partir dos anos 2000.
  • Recorde de CO2: Paralelamente, a concentração média global de CO2 atingiu o maior valor já registrado em 2024, aumentando em 3,5 ppm em um ano, impulsionada pela queima de combustíveis fósseis e incêndios florestais, segundo a OMM (Organização Meteorológica Mundial).

O experimento testará se a floresta atingirá um teto para essa absorção. O aumento de CO2 pode, por um lado, fazer com que as árvores fechem os estômatos mais cedo, reduzindo a perda de água e tornando-as mais resilientes à seca. Por outro lado, a diminuição da evapotranspiração pode ameaçar os “rios voadores” – o mecanismo de reciclagem de chuva vital para a própria Amazônia e para a agricultura e geração hidrelétrica em outras regiões da América do Sul, como São Paulo, Rio e Minas Gerais.
Richard Betts, coordenador do Face pelo MetOffice e professor na Universidade de Exeter, afirma que a incerteza sobre a resposta da floresta ao CO2 elevado é a “chave” na predição de um colapso. “Ficamos entusiasmados com a oportunidade de testar no mundo real algumas das coisas que os modelos vinham sugerindo,” diz o britânico.

Segurança Nacional

Ao injetar CO2 na floresta, os cientistas preveem que a demografia vegetal mudará, com algumas das quase 500 espécies nos anéis se saindo melhor e outras pior. Ninguém sabe “que bicho vai dar”, mas os resultados terão implicações que vão além da ciência pura.

Márcio Rojas, coordenador de ciência do clima no MCTI, enfatiza que a informação gerada é “absolutamente relevante” para o planeta e de importância para a segurança nacional. Se a Amazônia deixar de ser um sumidouro para se tornar um emissor de gases de efeito estufa, a chamada “savanização”, os cálculos de carbono para o Brasil teriam que ser refeitos, dificultando o cumprimento das metas do Acordo de Paris.

“É preciso saber com antecedência que impactos isso terá sobre a agricultura,” pondera Beto Quesada, do Inpa. O AmazonFace é a aposta brasileira e global para refinar os modelos climáticos e obter as respostas “sistêmicas robustas” que podem levar até cinco anos para se materializar.