José Emílio

José Emílio*

Ainda sob o impacto emocional provocado pelo filme “Lixo Extraordinário”, ambientado no aterro sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, onde os “catadores” do lixão são as principais estrelas, ao sairmos do cinema, ocorreu-nos a lembrança de uma cena muito marcante que presenciamos. Há algum tempo, em uma empresa, uma trabalhadora dos serviços gerais, ao final do expediente, apareceu com a filha e o marido para se fotografarem ao lado de uma funcionária.

Aquele gesto simples chamou nossa atenção sobremaneira! Depois de apresentar a família, tirar algumas fotografias e conversar brevemente com sorrisos, eles se despediram. O casal estava saindo quando ouvimos alguns comentários elogiosos sobre a moça: – Não falei com você! Ela é muito bacana e atenciosa, sempre conversa comigo e com minhas colegas, ao contrário de muitas outras que só chegam perto pedindo para arrumar lavadeira ou empregada doméstica de confiança…

Isso realmente é uma grande verdade. Para um funcionário mais simples em uma empresa ou em outros ambientes de trabalho, principalmente aqueles que usam uniformes frequentemente, a tendência é se tornarem invisíveis naquele ambiente. Essa percepção ficou ainda mais clara quando tivemos a oportunidade de ler o livro “Homens Invisíveis – Relatos de uma Humilhação Social”, do psicólogo Fernando Braga da Costa, que, para construir sua tese de mestrado, trabalhou como gari durante oito anos.

A experiência do autor nesses anos foi muito rica e triste ao mesmo tempo. No campus da USP, onde ele estudava e começou a exercer sua nova atividade como gari, varrendo as ruas pela manhã, simplesmente seus colegas e professores passavam por ele, devidamente uniformizado, sem reconhecê-lo ou cumprimentá-lo. Quando estava limpando os corredores, conhecidos seus esbarravam nele e nem pediam desculpas, como se tivessem encostado em um poste ou orelhão. No período da tarde, ao voltar à “vida real”, nesse mesmo ambiente, vestindo roupas comuns, ele era festejado pelas mesmas pessoas que o ignoravam de manhã. O livro é muito denso, e os relatos, por vezes, tornam-se chocantes diante da grosseria e da fragilidade humana ao tratar seus semelhantes.

Já tivemos também a oportunidade de ouvir algumas justificativas, não justificáveis, de pessoas que dizem que o problema é que, com os uniformes utilizados por esses trabalhadores, na maioria das vezes, não se cria uma identidade. Essa teoria é demasiadamente vazia! Quando o uniforme é de um médico, enfermeiro ou militar, esses cidadãos são chamados de doutores e, em alguns casos, os militares são até reverenciados com continência.

Dizem que, em uma repartição pública no Rio de Janeiro, um cidadão uniformizado e usando óculos escuros, batizado como Angenor de Oliveira, servia cafezinho para a diretoria. De quinze em quinze minutos, ele se anunciava, pedia licença e, com a bandeja em punho, chegava com o café quentinho e a água gelada para servir aos diretores e clientes. Todos os dias, por vários anos, a rotina era a mesma. Como é muito comum nessas situações, quase ninguém dava-lhe a mínima atenção; era mais um invisível adentrando aqueles ambientes.

Tempos depois, cansado dessa praia, ele saiu para cuidar de sua vida real, e as rádios começaram a tocar, para todo o Brasil: “…as rosas não falam…”, “…o mundo é um moinho…”. Aquele Angenor do cafezinho era o mestre Cartola, aparecendo para o Brasil inteiro com sua poesia, versos e músicas maravilhosas. Sabendo disso, um dos diretores da época, que, como de praxe, sequer olhava para ele quando chegava para servi-lo, cheio de orgulho comentou em uma roda de amigos: – Esse Cartola que está fazendo sucesso aí foi meu funcionário lá no ministério por muitos anos! – Ah, bom!… O pior é que, desse tipo, o mundo e o purgatório estão cheios, em todos os sentidos!

Mas a verdade é que essa gente humilde e uniformizada mostra seu valor, e muito! Basta que faltem às suas atividades diárias para tornarem-se seres fundamentais e visíveis. Quando isso acontece, os ambientes em que atuam se tornam um caos total, já repararam? Ademais, esse universo é muito rico em pessoas que têm atividades paralelas na nossa vida cultural e social. São mestres-sala, porta-bandeiras, poetas populares, compositores, artesãos, líderes comunitários… enfim, pessoas que devem ser tratadas com respeito e dignidade, mesmo aquelas que não possuem esses talentos ou outras ocupações na vida.

Depois dessa história toda, quem sintetizou muito bem essa problemática foram os grandes compositores João Bosco e Aldir Blanc, através da belíssima canção “Fantasia”, que diz: “Na quarta-feira de cinzas as ruas estão vazias, com os garis dando um jeito na nossa moral. Custei a compreender que fantasia é um troço que o cara tira no carnaval e usa nos outros dias por toda a vida, dizendo olá como vai? E coisas assim…”.

Também dizem que, para quase toda doença, existe um antídoto, e o nosso, que nos alerta para toda essa hipocrisia cotidiana, vem de outro grande poeta, Carlos Drummond de Andrade, que diz: “Não há vivos, há os que já se foram e os que aguardam a sua vez”.

*José Emílio é Engenheiro Sanitarista e Jornalista