Laira Vieira

Laira Vieira*

Há filmes que não pedem licença para entrar, eles arrombam a porta da mente e se instalam com uma presença incômoda, quase sufocante. A Baleia (2022), dirigido por Darren Aronofsky (Cisne Negro, Réquiem para um Sonho), é um desses. A câmera não nos dá espaço para respirar, confinando-nos ao mesmo cômodo claustrofóbico onde um professor de literatura, em estado avançado de obesidade, tenta dar sentido aos últimos dias de sua vida. Brendan Fraser (A Múmia, Endiabrado), em uma das atuações mais comoventes da década — pela qual recebeu um Oscar de melhor ator — se entrega a um personagem dilacerado pelo remorso e pela culpa, transformando cada respiração difícil em poesia brutal.

A história gira em torno desse homem que, pesando mais de 270 quilos, escolheu se enterrar em sua própria casa após a morte do companheiro. As tentativas de ensinar online são a última conexão com o mundo, mas até essa fachada se revela frágil. O isolamento, longe de ser um gesto de liberdade, é uma sentença autoimposta. Ele se alimenta de pizza e arrependimento, esperando que algo — talvez a filha, talvez a redenção — atravesse a porta antes que seu corpo desista.

Ellie, interpretada por Sadie Sink (Stranger Things, Rua do Medo), é a adolescente ressentida que o visita mais por rancor do que por afeto. As conversas entre eles soam como socos: cada palavra carrega anos de abandono. Hong Chau (Os Descendentes, Pequena Grande Vida), no papel da enfermeira e única amiga do protagonista, funciona como consciência externa, ao mesmo tempo que alimenta e condena seu vício autodestrutivo. E Ty Simpkins (Jurassic World, Homem de Ferro 3), como o jovem missionário, injeta na narrativa uma fé ingênua, rapidamente devorada pela densidade da realidade.

“Somos feitos da mesma matéria dos sonhos, e a nossa curta vida é cercada por um sono”, escreveu Shakespeare. No longa essa frase ganha contornos mais sombrios: o sonho aqui é a ilusão de reconciliação, o desejo desesperado de deixar um legado que redima a ausência. O protagonista tenta provar, em seus últimos gestos, que ainda é possível encontrar beleza na honestidade — como na redação de um aluno, texto simples e cru que se torna âncora de sua sobrevivência emocional.

A produção nos obriga a encarar questões contemporâneas: a epidemia da solidão, o julgamento cruel dos corpos, a relação entre fé e desespero. Num mundo obcecado por aparências, Aronofsky não suaviza nada; mostra a carne, o suor, o peso da existência. E aí está sua ousadia: transformar um corpo à beira do colapso em espelho da própria sociedade, onde todos estamos tentando justificar nossas escolhas diante do abismo.

Não é um filme para quem busca alívio. É cinema que fere, mas que também arranca uma estranha compaixão. Fraser não interpreta apenas um personagem, ele nos devolve o humano despido de defesas, implorando para ser visto antes do apagamento final. Ao fim, a pergunta que ecoa não é sobre o tamanho do corpo, mas sobre o vazio das nossas relações. Quantos de nós estamos, secretamente, nos deixando morrer em silêncio?

*Laira Vieira é Critica Cultural, Economista e Tradutora. Autora.