Criança se refresca em fonte no Parque da Independência, em São Paulo. (Redes Sociais)


À medida que o planeta aquece, um novo desafio se impõe à medicina contemporânea: o calor extremo pode alterar o funcionamento de medicamentos e colocar vidas em risco. A ciência já sabe disso. O que falta agora é transformar esse conhecimento em ação — nas prescrições, nas políticas públicas e na consciência coletiva.

O corpo sob pressão: o que o calor faz com quem toma remédios

Imagine a seguinte cena: um idoso de 70 anos, com insuficiência cardíaca e arritmia, toma religiosamente seus 50 miligramas de betabloqueador duas vezes ao dia. Em condições normais, o tratamento funciona bem. Mas e se, de repente, a temperatura ambiente ultrapassa os 40 °C, como tem ocorrido com frequência crescente em cidades brasileiras?

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“É nesse ponto que o calor deixa de ser apenas desconfortável e passa a ser perigoso”, alerta a professora Julia Stingl, diretora da Divisão de Farmacologia Clínica do Hospital Universitário de Heidelberg, na Alemanha. Segundo ela, o calor intenso altera a forma como o corpo metaboliza os medicamentos, o que pode amplificar seus efeitos colaterais.

Quando exposto a temperaturas elevadas, o organismo tenta manter sua temperatura interna estável. Para isso, aumenta a transpiração, dilata os vasos sanguíneos e redireciona o fluxo sanguíneo para a pele. Se esse sistema de regulação falha — o que é comum em idosos ou pessoas com doenças crônicas — surgem sintomas como tontura, fadiga, cãibras, arritmias, confusão mental e até infartos ou golpes de calor.

E há um agravante: a desidratação. “A perda de líquidos intensifica o efeito de muitos medicamentos”, explica Stingl. “Isso pode levar a reações adversas graves, especialmente em quem toma betabloqueadores, diuréticos, laxantes, antidepressivos, antipsicóticos, anti-histamínicos e até analgésicos comuns como ácido acetilsalicílico e ibuprofeno.”

Para orientar médicos e pacientes, a equipe da Stingl desenvolveu a chamada “Tabela de Calor de Heidelberg”, uma referência para ajustar doses de medicamentos durante ondas de calor.

Calor que mata — e não só por insolação

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 490 mil pessoas morrem todos os anos por causas relacionadas ao calor extremo — e esse número só cresce. Mas nem todas essas mortes são atribuídas diretamente ao calor.

“Muitas vezes, o que vemos são quedas, infartos, AVCs ou falência de órgãos que, na verdade, foram desencadeados por uma combinação de calor e medicamentos”, explica Stingl. “Na prática clínica, é evidente: as mudanças climáticas estão aumentando a mortalidade, especialmente entre idosos polimedicados.”

As chamadas “mortes diretas por calor” são aquelas causadas por insolação ou falência aguda de órgãos. Já as “mortes indiretas” — mais difíceis de rastrear — incluem eventos como infartos e quedas, muitas vezes provocados por interações entre calor e medicamentos.

Quem está mais vulnerável?

O grupo de risco é amplo e crescente:

  • Idosos e pessoas com doenças crônicas (cardíacas, pulmonares, renais ou diabetes)
  • Crianças pequenas e bebês, que suam mais e desidratam rápido
  • Trabalhadores expostos ao sol, como pedreiros e agricultores
  • Pessoas em situação de rua ou sem acesso a ambientes refrigerados

“Manter uma boa hidratação é essencial em todas as idades”, reforça Stingl. “Quando o corpo desidrata, os rins deixam de funcionar corretamente, o que pode causar confusão mental e até delírios.”

E um alerta importante: bebidas alcoólicas não devem ser usadas para matar a sede. “Elas agravam a desidratação e, combinadas com medicamentos, podem provocar reações perigosas.”

O que os médicos e os governos devem fazer?

Para os especialistas, o impacto do calor sobre os medicamentos precisa ser levado mais a sério — tanto nas consultas quanto nas políticas públicas.

“Com o avanço das mudanças climáticas, talvez seja necessário rever os processos regulatórios”, afirma Soko Setoguchi, professora de Medicina e Epidemiologia da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos.

Isso inclui, por exemplo, permitir ajustes de dose em períodos de calor extremo, com base em protocolos clínicos e acompanhamento médico. “Não se trata de mudar tudo para todos, mas de personalizar a prescrição conforme o contexto climático”, explica Bernhard Kuch, diretor do Departamento de Medicina Interna do Hospital da Fundação Nördlingen, na Alemanha.

O futuro próximo: mais calor, mais mortes

No Brasil, um estudo do projeto “Mudanças Climáticas e Saúde Urbana na América Latina” projeta que, até 2054, o número de mortes causadas pelo calor pode mais do que dobrar, chegando a representar mais de 2% de todos os óbitos em algumas regiões. A pesquisa analisou dados de 326 cidades latino-americanas.

Na Europa, o cenário também é preocupante. Um levantamento do Instituto para Saúde Global de Barcelona, com base em dados da Eurostat, revelou que entre 30 mil e 70 mil pessoas morreram por calor nos últimos anos, dependendo da intensidade das ondas. Grécia, Bulgária, Itália e Espanha lideram o ranking de mortalidade. Só na Alemanha, foram registradas entre 2.800 e 3.000 mortes por calor em 2024.

Conclusão: o calor é um fator clínico

A mensagem é clara: o calor não é apenas um fenômeno meteorológico — é um fator clínico que precisa ser considerado na prática médica. A prescrição de medicamentos, especialmente para populações vulneráveis, deve levar em conta o termômetro.

Como resume Stingl: “Precisamos de mais informação, mais vigilância e mais flexibilidade. O calor não é mais exceção. É a nova regra.”