
Daniel Munduruku e Márcia Wayna Kambeba afirmam que a conferência climática precisa ouvir os povos originários
A relação dos povos originários com a natureza vai além da sobrevivência. É fonte de alimento, moradia, espiritualidade — e também de inspiração para a literatura. Escritores indígenas como Daniel Munduruku e Márcia Wayna Kambeba têm usado a escrita como forma de resistência e de valorização dos saberes tradicionais.
Reconhecidos pela produção literária voltada à preservação da floresta e à cultura dos povos indígenas, os dois autores também se destacam como vozes críticas sobre os impactos da poluição e das mudanças climáticas. Segundo eles, os danos ambientais afetam diretamente comunidades que vivem em harmonia com o meio ambiente.
Em entrevista à Agência Brasil, concedida na sede do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, Munduruku e Kambeba falaram sobre os livros Das Coisas que Aprendi: Ensaios sobre o Bem-Viver (2014) e Saberes da Floresta (2020). As obras abordam aprendizados obtidos a partir da convivência com a natureza e propõem uma visão de mundo baseada na coletividade e no bem comum.
Daniel Munduruku afirma que essa perspectiva é incompatível com o modelo ocidental, centrado no individualismo.
“Partimos de duas perspectivas completamente opostas. Não tem como o mundo capitalista ocidental se converter em uma coletividade. São muitos séculos construindo uma sociedade do indivíduo. E nós valorizamos o coletivo, que não fala apenas dos humanos. Nenhum ser da natureza vive sozinho”, diz Munduruku.
“A visão ocidental é baseada no tempo linear e em um futuro sobre o qual os indivíduos ficam o todo tempo especulando. Eles apostam em um tempo que um dia chegará, onde pensam morar a felicidade. Tudo é ilusão. E aí, se cria um paraíso para onde um dia eles chegarão. Então, somos todos perdoados por nossos pecados. Amém. Correm o tempo todo atrás da riqueza. E, para o indígena, a riqueza está aqui. E a gente só pode viver esse aqui agora”, complementa.
A proximidade da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30), marcada para novembro em Belém, reacende o debate sobre políticas ambientais. Para Márcia Wayna Kambeba, o sucesso do evento depende de compromissos mais profundos e de uma mudança na consciência coletiva.
“O que de fato a gente quer com a COP quando pensamos a questão do clima? Ela depende da questão ambiental, da preservação e conservação da natureza. Da retomada de consciência em relação ao lixo e aos impactos ambientais que produzimos. As pessoas não querem falar sobre isso. Não há consciência real de que o modo de consumo gera tantos impactos”, afirma Kambeba.
Daniel Munduruku também demonstra ceticismo em relação aos resultados da conferência.
“Chegamos em um impasse hoje que, se não voltarmos a ser natureza, a tendência é não sobrevivermos. E a COP30 não é uma reunião para salvar a natureza. Ela é uma reunião para salvar a economia do mundo. Ou seja, é uma contradição absolutamente impossível de se resolver, porque o sistema hegemônico econômico não vai parar”, diz o escritor.
“Não adianta chamar o [escritor indígena] Davi Kopenawa para fazer um discurso. Porque a fala dele não impacta em nada na questão dos bancos e do dinheiro. O que o indígena defende é a manutenção da vida no planeta. E o que os banqueiros defendem é a manutenção da riqueza deles”, acrescenta.
Apesar das críticas, os dois autores acreditam que a literatura pode ser uma ferramenta de transformação. Para eles, a escrita é uma forma de preservar a memória e os ensinamentos dos antepassados.
“A literatura é uma forma de registrarmos memórias, narrativas, oralidades, verdades que os nossos antigos nos ensinaram. A memória pulsa no nosso corpo todo. A voz do rio, a voz da floresta, a voz dos pássaros, das encantarias protegem a relação estabelecida entre homem e natureza”, diz Kambeba.
“E que a gente vai transformar isso no bem-viver. Queremos trazer essa escrita e esses ensinamentos compartilhados tanto para os que vivem na aldeia, quanto para os que vivem na cidade”, completa.
Daniel Munduruku destaca que o movimento indígena tem conquistado mais espaço na literatura desde o fim dos anos 1980. Segundo ele, o crescimento do número de autores indígenas é resultado de uma rede de apoio e de uma nova forma de educar.
“Foi uma conquista do próprio movimento indígena ter mais espaço para escritores indígenas desde o final dos anos 80. Nossa voz ganha mais espaço e autonomia. E reinventamos nossa inserção na sociedade. Se hoje temos mais de 100 autores indígenas produzindo é porque cada um está fazendo o seu caminho, mas agarrando na mão um do outro. E estamos educando as novas gerações a pensar de uma maneira mais inclusiva, mais humana”, afirma.
(Da Agência Brasil e da Redação)