Banca de produtos típicos da Amazônia no Mercado-Ver-o-Peso, em Belém. (Foto: Divulgacão)

O que começou com uma polêmica sobre um cardápio da COP30 se transformou em uma poderosa afirmação cultural. A tentativa inicial de proibir pratos tradicionais como açaí, maniçoba e tucupi, sob alegação de riscos à saúde, gerou uma imediata mobilização que forçou a revogação da medida em apenas dois dias. O episódio, porém, fez mais do que garantir a presença da comida paraense na conferência; ele sublinhou que a gastronomia de Belém é, por si só, uma vitrine de sua biodiversidade, resiliência e identidade, um tema central para o encontro internacional do clima.

A culinária do Pará não é apenas uma manifestação cultural, mas um retrato vibrante e em constante movimento do próprio bioma. As influências indígenas, japonesas, europeias e de diferentes regiões do Brasil se misturam com a abundância da Amazônia, Cerrado, Caatinga e dos campos marajoaras, criando um paladar que é, ao mesmo tempo, singular e complexo.

O Paladar Único do Pará

O “gosto paraense” é uma experiência sensorial completa, que começa antes mesmo do primeiro toque à boca. O tacacá, por exemplo, com seu caldo amarelo e intenso, é temperado com jambu, a erva que provoca uma inconfundível dormência na boca, uma sensação elétrica que define o prato. Conhecido popularmente como “bebe quente”, o tacacá é a essência do encontro entre o picante da pimenta e o formigamento do jambu, em uma base de goma de tapioca e o famoso tucupi.

E se o tucupi amarelo é uma celebridade nacional, o tucupi preto revela a sofisticação da culinária local. Segundo a chef Esther Weyl, do restaurante Celeste, ele pode ser usado como um substituto do shoyu ou molho inglês, adicionando um toque umami que realça carnes e arroz frito, provando que a tradição amazônica tem um toque cosmopolita.

Tacacá, iguaria típica herdada dos indígenas da Amazônia. (Foto: Divulgacão)

Ver-O-Peso: O Pulmão de Sabores de Belém

O coração pulsante de toda essa cultura está no Mercado Ver-O-Peso, um complexo onde a vida ribeirinha, a cidade e a floresta se encontram. Ali, a mandioca é colhida e transformada, e os ingredientes chegam frescos todos os dias. O festival que leva o nome do mercado, criado há 25 anos por Paulo Martins para valorizar a gastronomia local, é uma prova de que a comida do Pará vai além do prato.
Conforme o chef Paulo Anijar pontua, “o diferencial do turismo no Pará é que, em Belém, o pessoal vai para comer”. O mercado se torna o grande palco onde a culinária é celebrada, estimulando a união e a partilha, um dos grandes traços do povo paraense.

A Riqueza da Mandioca e a Força das Boieiras

Nenhuma discussão sobre a comida paraense é completa sem a mandioca. Em um processo que dura cinco dias, a raiz da mandioca brava é descascada, triturada e prensada para extrair a goma e o tucupi, um esforço que se reflete na qualidade de cada um de seus derivados: da farinha torrada na Comunidade Quilombola Espírito Santo do Itá à goma de tapioca e ao biju. A lenda da índia Maní, que deu nome à mandioca, simboliza essa relação ancestral e profunda com a terra.

As mantenedoras dessa tradição são as boieiras, mulheres que cozinham nos mercados e feiras de Belém. O nome, dado por Paulo Martins, resgata a importância de seu trabalho em produzir a “boia”, a refeição completa. Eliana Ferreira, do box 49 do Ver-O-Peso, descreve a rotina de acordar às 5 da manhã para ir à Pedra do Peixe, a base de sua culinária. “Todos os dias aprendemos algo novo na nossa cozinha… Eu amo o que faço”, diz ela, demonstrando a paixão que sustenta a cultura alimentar local.

Banca de produtos típicos da floresta. (Foto: Divulgacão)


A Bioeconomia à Mesa: O Exemplo da COP30

A COP30, com sua temática de clima e sustentabilidade, encontra na culinária paraense um exemplo perfeito de bioeconomia. O uso integral da mandioca – da raiz à folha, a maniva, para a maniçoba – é um modelo de aproveitamento de recursos. A carne de búfala, da qual o Pará tem o maior rebanho do país, oferece uma alternativa mais leve e sustentável.

E o açaí, alimento de subsistência do povo ribeirinho, é um superalimento que, quando consumido da forma tradicional, com peixe, oferece elementos da dieta mediterrânea, como ômega 3. O processo de tripla lavagem e branqueamento, feito rigorosamente pelos locais como Prazeres Quaresma dos Santos, da Saudosa Maloca, demonstra um profundo conhecimento da matéria-prima e um cuidado com a saúde que os organizadores do evento inicialmente ignoraram.

A produção de chocolates da Filha do Combu também reforça essa visão. A empresa não tem fazenda, mas sim floresta, e o sabor do chocolate é influenciado pelos açaizeiros vizinhos aos cacaueiros, mostrando como a conexão entre as plantas gera um produto único e sustentável. Para a chef Esther Weyl, a COP é uma chance de mostrar como “a gastronomia participa disso”, servindo menus que usam a búfala e peixes menos disputados, uma demonstração de que a sustentabilidade pode e deve ser deliciosa.

Assim, o que a COP30 vai encontrar em Belém não é apenas uma mesa farta de sabores exóticos, mas um sistema alimentar que é um dos mais genuínos reflexos da união entre a cultura e a floresta que o mundo busca proteger.