Ana Simão*
O dia 2 de setembro de 2025, de fato, já entrou para a história do Brasil. O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete réus acusados de tentativa de Golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado é um fato digno de ser sublinhado, sobretudo, porque entre os réus estão seis militares. Exceto o Capitão Bolsonaro – cuja passagem pelo Exército foi rigorosamente desabonadora para a Instituição – e o Tenente Coronel Cid, os demais são de alta patente, generais e almirante de esquadra, todos oficiais quatro estrelas. Inusitadamente, os esforços dos advogados de defesa buscaram, de todas as formas, afastar seus clientes da trama golpista que, no entanto, não foi contestada em totalidade.
Então, ao longo da semana, o Brasil assistiu o julgamento que parecia ser difícil de ocorrer num país cujo passado recente optou sistematicamente por uma transição democrática pactuada. O ministro relator do processo, Alexandre de Moraes, abriu sua apresentação lembrando o passado: “a história nos ensina que a impunidade, a omissão e a covardia não são opções para a pacificação”. Na sequência, o Procurador Geral da República Paulo Gonet, destacou que “não reprimir criminalmente tentativas dessa ordem recrudesce o autoritarismo e põe em risco o modelo de vida civilizada”. As duas breves frases têm a força de aproximar passado e presente.
O poder da caserna numa perspectiva histórica
Na história do Brasil Republicano não faltam golpes e tentativas de ruptura constitucional. Dos quatorze eventos desta natureza, pontuamos em especial seis episódios que ilustram a influência dos militares na política brasileira, a começar pelo próprio 15 de novembro de 1889, quando foi instalada a República no Brasil. Na mudança do regime, os principais atores desse movimento foram os militares. Em que pese os grupos civis republicanos estivessem se organizando desde 1870 e articulando com oficiais do Exército a implantação da República, tais agentes políticos acabaram sendo secundários na derrubada da Monarquia. Assim, a República nasceu sob a égide da caserna.
No século seguinte, em 1930, a derrota eleitoral de Getúlio Vargas – candidato pela Aliança Liberal, formada pelas oligarquias dissidentes do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba – para Júlio Prestes, candidato da oligarquia paulista, foi o estopim para a mobilização de grupos heterogêneos, descontentes com a facção paulista que dominava o poder político desde o início da República no Brasil. Dentre os distintos grupos, estavam os oficiais de baixa patente, em especial os Tenentes. Esse movimento armado, que não deixou de reunir as apoio de diferentes atores da sociedade civil, contou com o comando de setores importantes das forças armadas, tendo como líder de destaque o tenente-coronel Góis Monteiro, responsável pela deposição do presidente Washington Luís e consequente ascensão de Getúlio Vargas ao poder. Assim, também a Revolução de 30 registrou a ativa e decisiva participação das forças armadas.
Outro momento de ruptura constitucional foi conhecido como o golpe do Estado Novo, em 1937. Neste episódio, Vargas, numa manobra política ousada instaura a chamada “ditadura verde e amarela”, que o manteve no poder até 1945, sem o instituto da eleição. Contudo, o sucesso do golpe necessitava de um pretexto que o justificasse, o que acabaria materializado no obscuro Plano Cohen. Esse plano foi escrito dentro do Ministério da Guerra, pelo integralista, capitão Olímpio Mourão Filho, como uma ficção, que “denunciava” uma possível insurreição comunista e a hipotética reação dos Integralistas diante da ameaça. O fato é que a cúpula do Exército transformou a narrativa fantasiosa do “documento” em verdade. No dia 30 de setembro de 1937, no programa a Hora do Brasil, Vargas apresentou o plano Cohen para uma, então, ingênua sociedade brasileira. Na, sequência, como era de se esperar, vários jornais repercutiram a fala de Vargas e divulgaram a delirante narrativa, que hoje denominamos fake News. Em 1º de outubro de 1937, o Jornal Correio da Manhã trouxe a seguinte matéria: “As instrucções do Komintern para a acção dos seus agentes contra o Brasil: O tenebroso plano foi apprehendido pelo Estado-Maior do Exército”. Evidentemente que não demorou muito para o Congresso aprovar o estado de guerra e a suspensão das garantias constitucionais. Como a história da época prova, a “ameaça comunista” já era o perfeito argumento para medidas de exceção na política nacional.
Vale lembrar que a queda do Governo Getúlio Vargas, em 1945, seria articulada pelos mesmos militares que contribuíram para o golpe de 1937, desta vez em conluio com os oposicionistas do varguismo, sendo acordado que a presidência do Brasil passaria de forma transitória ao presidente do Supremo Tribunal Federal da época, José Linhares. Também, naquele momento, o general Góes Monteiro admitiu que o plano Cohen era um documento falso.
Após mais este arranjo, ironicamente, se iniciava naquele momento um período democrático que duraria dezenove anos. Contudo, a esse período de democracia (1945-1964), José Linhares adotou, paradoxalmente, medidas duras, tais como: nomear novos interventores para os Estados e reprimir comunistas, invadindo a sedes do PCB e revogando o decreto-lei antitruste. Da mesma forma, durante estes anos nem tão democráticos, os flertes com rupturas institucionais não cessaram. Vale destacar o ano de 1955, quando Juscelino Kubitschek se elegeu com 36% dos votos e teve sua eleição questionada, um expediente que como aprendemos há pouco, faria escola. Uma forte conspiração de militares ligados à UDN, com destaque para os generais Zenóbio da Costa e Etchegoyen, com o apoio político de Carlos Lacerda, foi colocada em curso visando a repetição de medidas de exceção na política brasileira. Entretanto, desta vez, prevaleceu a atitude pragmática – e rara – do general Henrique Teixeira Lott, então ministro da Guerra, que, com o apoio de alas legalistas das forças armadas, negociou e confirmou JK na presidência.
Algo semelhante ocorreria já em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, quando os ministros militares do Exército, Marinha e Aeronáutica buscaram impedir a posse de João Goulart, com a já utilizada justificativa de tendências “comunistas” do vice-presidente. Embora, ao final do imbróglio, tenha prevalecido o legalismo e os traços de pragmatismo na negociação da permanência de Jango na presidência, resta notar a recorrência, em todos esses acontecimentos na história do Brasil, da ativa participação dos militares nos rumos da política brasileira.
Assim, o fatídico ano de 1964 não deve ser interpretado como uma exceção ou um divisor de águas. Ao contrário, está na esteira de várias e distintas ações dos militares em todo a história da República, desde a sua constituição. Certamente, o Golpe de 1964 guarda nefastas singularidades, a começar pela progressiva violência, pela estruturada edificação da ditadura, através de Atos Institucionais e, também, pela sua longa duração, de 21 anos. Sobre a questão do tempo, lembremos que só de abertura política foram 11 anos (1974-1985), o que faz jus ao slogan: “lenta, gradual e restrita”. Nesse longo período de distensão política ocorreu uma transição pactuada envolvendo atores políticos e econômicos que representavam tanto o regime autoritário como setores da oposição democrática. Os acordos, que incluíram a Anistia, teriam o seu desfecho conclusivo na Constituição de 1988.
Sobre democracia, consenso e “tenebrosas transações”
Após duas décadas de uma ditadura militar que deixou um rastro de crimes e injustiças sem reparação, ocorreu a transição democrática fundamentada no consenso e sem rupturas com o passado autoritário. O Brasil se redemocratizou, criando instituições democráticas sólidas. Sob o manto da Constituição Cidadã de 1988, os três poderes se consolidaram e o país experimentou um constante exercício de processos eleitorais democráticos. No entanto, após 40 anos de uma normalidade e, quem sabe, de uma utopia acerca do processo de democratização e modernização brasileira, o país se vê novamente vivenciando a sombra e a obscuridade de uma tentativa de ruptura institucional. A novidade nessa conjuntura por sorte abortada, são os generais, almirante, tenente-coronel e o capitão e ex-presidente da República no banco dos réus. De fato, as instituições democráticas avançaram, o poder judiciário marca sua independência, mesmo que do outro lado da praça dos três poderes sigam ecoando as vozes da velha cantinela que insistem em dizer: “a única forma de pacificar o Brasil é a anistia”.
*Ana Simão é Historiadora, Dra. em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, analista de Política Externa Brasileira e Relações Institucionais e Governamentais.