Laira Vieira

Laira Vieira*

Rir de Hitler parece seguro, quase terapêutico. Mas Ele Está de Volta (2015), dirigido por David Wnendt (Zonas Úmidas, Sun and Concrete), mostra que o riso é um veneno doce: anestesia antes de matar. A sátira começa como piada e termina como profecia, lembrando que a linha entre “não acredito que estou rindo disso” e “não acredito que estou vivendo isso” é perigosamente fina.

O filme imagina o que aconteceria se Adolf Hitler ressurgisse, sem memórias após 1945, no coração de Berlim contemporânea, em 2015. Ele desperta no local onde ficava seu bunker e encontra um país que acredita tê-lo enterrado sob toneladas de história. Confuso, mas intacto em sua retórica, ele acaba esbarrando em Fabian Sawatzki, vivido por Fabian Busch (A Onda, A Queda – As Últimas Horas de Hitler). Sawatzki é um cinegrafista desempregado, um desses sonhadores quebrados que ainda acreditam que a fama pode ser encontrada em becos improváveis. Ao filmar o ditador como se fosse um imitador excêntrico, enxerga ali a chance de salvar sua carreira. O que deveria ser um acaso vira pacto: um cinegrafista em busca de sucesso e um genocida em busca de palco.

Com Oliver Masucci (Dark, Enfant Terrible) assumindo o bigode e a postura inconfundível, o genocída rapidamente deixa de ser um estranho deslocado para se tornar uma celebridade. Uma produtora de TV o contrata para um programa humorístico, e de repente o discurso inflamado vira atração de auditório. O público gargalha, as redes sociais viralizam, e o velho truque da retórica venenosa volta a funcionar — só que desta vez com palmas e emojis de risada. A fronteira entre ficção e realidade desmorona quando percebemos que muitas cenas foram gravadas com pessoas reais, rindo, tirando selfies e reproduzindo preconceitos como se estivessem participando de um jogo inofensivo. Hannah Arendt chamaria isso de “banalidade do mal”, mas aqui é a banalidade do entretenimento, com direito a patrocínio.

Sawatzki, o cúmplice relutante, cresce na mesma proporção que o monstro que ajudou a projetar. Sua câmera oferece visibilidade, sua ingenuidade abre portas, e quando percebe já está afundado até o pescoço na engrenagem que transforma ódio em ibope. Ele é o lembrete vivo de que o perigo não se espalha sozinho — precisa de colaboradores dispostos a trocar ética por relevância.

Dez anos depois do lançamento do longa, em 2025, a ficção parece menos sátira e mais prognóstico. Donald Trump, no seu segundo mandato, desfila com o Project 2025, que soa como versão americana do “faça a América grande outra vez — mas sem os indesejáveis”. Deportações em massa, cortes em políticas climáticas, perseguições a minorias: não é roteiro de comédia, é plataforma oficial. Na Europa, a AfD cresce na Alemanha com discursos que fariam o Hitler fictício do filme aplaudir de pé; na França e na Itália, a extrema-direita recicla o mesmo manual de truques. E nos trópicos, o bolsonarismo segue firme, provando que não há hemisfério imune à estupidez. Hitler provavelmente gargalharia ao saber que há células neonazistas florescendo em pleno Brasil, um país latino, como se o passado tivesse decidido brincar de ironia mórbida.

Cena do filme “Ele Está de Volta”. (Reprodução)

E nós? Continuamos rindo. Achamos divertido quando o Hitler de Masucci esbraveja diante das câmeras, mas esquecemos que o meme foi a principal arma política da última década. Bolsonaro, Milei, Trump — todos transformaram o grotesco em entretenimento, e o entretenimento em poder.  A película nos mostra plateias gargalhando em auditórios, mas poderia mostrar timelines engasgando de rir no TikTok. O resultado é o mesmo: o riso abre caminho, a política ocupa.

Bertrand Russell já alertava: “O problema com o mundo é que os tolos e fanáticos estão sempre cheios de convicção, enquanto os sábios estão cheios de dúvidas.” A frase serve como legenda não apenas para a obra, mas para os trending topics atuais. O sábio hesita, o fanático compartilha. E o algoritmo, como Sawatzki, prefere o segundo.

O mais inquietante em Ele Está de Volta é que ele nunca pergunta “e se Hitler voltasse?”. Ele mostra que Hitler já voltou — fragmentado em discursos, piadas de stand-up, promessas populistas e programas de TV que disfarçam veneno de humor. O verdadeiro susto não está no bigode ressuscitado, mas no aplauso fácil, na memória curta, na ingenuidade de acreditar que rir é o mesmo que resistir.

A obra foi lançada antes de Trump, antes de Bolsonaro, antes da guinada global à extrema-direita. Era um alerta. E, como a maioria dos alertas, foi ignorado. Agora, a pergunta não é mais se Hitler poderia ressurgir, mas se nós aprenderemos a reconhecê-lo quando ele vier de terno moderno, presença nas redes sociais,  com sorriso cínico e promessa de redenção. E quando bater outra vez à nossa porta, não adianta dizer que estávamos apenas rindo.

*Laira Vieira é Critica Cultural, Economista e Tradutora. Autora.