Pescadores amazônicos capturam um pirarucu, cuja pele é vendida para a indústria de bolsas. (Foto: Redes Sociais)

A pele do pirarucu, um peixe que já esteve na lista de espécies ameaçadas de extinção, se tornou uma matéria-prima cobiçada para bolsas e acessórios que chegam a custar milhares de reais, no Brasil e no exterior.

A moda de luxo, com marcas como a americana Piper & Skye e a brasileira Osklen, a pioneira nesse mercado, tem a sustentabilidade como discurso de venda. Em seu site, a Osklen afirma que a iniciativa da produção da pele do pirarucu colabora com a economia circular, “gerando renda para as populações ribeirinhas e contribuindo para a preservação da Amazônia.”

Nos Estados Unidos, bolsas feitas de pele de pirarucu são vendidas pela marca Piper & Skyepor valores que podem chegar a até US$ 850 (mais de R$ 4.000).

A pesca da espécie já foi proibida por causa da exploração predatória, mas hoje é vista como um exemplo de manejo sustentável. O modelo atual envolve a contagem dos animais e a autorização da captura de apenas uma parte, garantindo a conservação das populações e a remuneração para comunidades indígenas e ribeirinhas.

Contraste: vtrine e realidade

Mas um olhar mais atento sobre essa cadeia produtiva revela o que, na prática, é um desequilíbrio entre o discurso e a realidade.
Representantes das comunidades envolvidas no manejo e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que, embora o modelo tenha de fato ajudado a recuperar a população do peixe, a maior parte do dinheiro obtido com a venda da pele não chega a quem garante a preservação.

O pescador amazonense e vice-presidente da Federação dos Manejadores e Manejadoras de Pirarucu de Mamirauá, Pedro Canízio, conta que se assustou com o preço de uma dessas bolsas de luxo em uma viagem ao Rio de Janeiro.

Ele diz: “O manejador não chega nem perto de comprar um produto desse, porque é muito caro. Pescadores têm muito trabalho, mas o quilo do pirarucu [inteiro] é vendido por aqui, no maior valor, a R$ 11”.

Para a consultora Fernanda Alvarenga, autora de um estudo sobre o mercado do couro do pirarucu, esse é um problema comum aos produtos da Amazônia.

Ela afirma: “A maioria dessas relações [da cadeia produtiva] são questionáveis”. Segundo a consultora, o manejo do pirarucu é a atividade mais “redonda” em termos de benefícios socioambientais e é importante que o problema da remuneração venha à tona, não para destruir as relações comerciais, mas para que haja um olhar mais cuidadoso e consciente sobre essa atividade econômica como estratégia de conservação.

Cadeia Produtiva

Empresas do setor, ouvidas pela BBC News Brasil, reconhecem os desafios, mas afirmam buscar o fortalecimento das comunidades. Elas dizem também que o mercado de luxo representa apenas uma pequena parcela da demanda, mas teve um papel fundamental como vitrine internacional do pirarucu.

O couro do pirarucu cumpre um papel considerado importante no mercado da moda por passar uma mensagem de proteção ao meio ambiente. A especialista em sustentabilidade na moda e professora de gestão de luxo, Lilyan Berlim, destaca a durabilidade do couro e a questão cultural ligada à ancestralidade. Ela explica: “Quando você usa o couro do pirarucu, de certa forma está gerando renda para as comunidades”.

Bruna Freitas, fundadora da marca nacional Yara Couro, que surgiu para aproveitar a grande quantidade de resíduos da pesca, diz que o pirarucu se destaca por ter uma pele com um padrão difícil de ser imitado, além de ser um símbolo da Amazônia. Ela afirma: “É um peixe que sobreviveu a muitas questões ambientais”.

A pesca do pirarucu, controlada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, ocorre em um período fixo do ano, e apenas 30% dos adultos podem ser capturados. As comunidades são responsáveis por vigiar os lagos para evitar invasões e, assim, complementam suas rendas.

Processo

Pele de pirarucu pronta para a venda para exportadores do produto. (Foto: Redes Sociais)


Depois da pesca, a maior parcela do pirarucu vai para os frigoríficos, onde a pele e a carne são separadas. É nesta etapa, que transforma a pele em couro, que há a maior valoração do produto. Uma pesquisa da organização Operação Amazônia Nativa, publicada em 2018, identificou uma concentração de mercado: 95% das peles foram comercializadas por sete frigoríficos e apenas 5% pelas associações comunitárias. A pesquisa explica que o processamento do couro é complexo e envolve várias etapas, o que dificulta a confecção desse material diretamente nas comunidades. A responsável pela coordenação de uso sustentável da fauna do Ibama, Cristina Isis Buck Silva, diz que “o trabalho com as peles é difícil de aprender. Os manejadores estão aprendendo como fazer o corte. É um trabalho com muita tecnologia envolvida”.

Pedro Canízio, da Federação dos Manejadores, afirma que um sistema mais justo seria aquele em que os manejadores recebessem uma parte dos lucros da venda das peles, mas “hoje, a gente não consegue”. Ele defende que, para que as comunidades tenham qualidade de vida, “falta o reconhecimento do pescador, tanto na venda da carne como dos subprodutos, como a pele”.

Monopólio de mercado

Fotografias de bolsas, sapatos e acessórios feitos a partir da pele do pirarucu. (Reprodução: Instagram)


Há tentativas de processar o couro mais perto das comunidades, mas faltam recursos. Ana Alice Oliveira de Britto, da Associação dos Produtores Rurais de Carauari (Asproc), diz que a criação de uma indústria de couro seria um novo e caro negócio. A associação, que representa 800 famílias, criou a marca Gosto da Amazônia, focada na carne, em que o pescador chega a receber até 40% a mais pelo peixe. Britto acredita que é preciso haver políticas públicas que invistam no setor, para que os pescadores possam desenvolver a tecnologia necessária para a conversão em couro. Ela alerta que, se a atividade não remunerar com justiça, a sociedade pode perder um importante aliado na conservação do território amazônico.

Uma empresa brasileira, a Nova Kaeru, domina o mercado do couro do pirarucu. Dados da plataforma Panjiva e de um estudo com dados do Ibama mostram que a empresa concentra entre 68% e 70% das exportações. Ela é a fornecedora da maior parte das empresas que fabricam os acessórios, com clientes como a Giorgio Armani, a Dolce & Gabbana e a Givenchy. O gerente de marketing da Nova Kaeru, André de Castro, diz que a inovação tecnológica da empresa, que permite soldar diferentes couros, explica esse pioneirismo. O mercado de luxo, diz ele, representa apenas 5% da demanda, sendo a maior parte da produção voltada para as botas do segmento country nos Estados Unidos.

Essa concentração é vista com ressalvas. Adevaldo Dias, presidente do Memorial Chico Mendes, diz que “o que mais nos incomoda no mercado da pele do pirarucu é a não concorrência”. Ele afirma que, em alguns casos, o pagamento pela pele leva mais de seis meses, e não há outra opção. Dias acredita que as empresas deveriam dar maior visibilidade às demandas das comunidades. O diretor comercial da Nova Kaeru na Amazônia, José Leal Marques, diz que a empresa não define os preços do peixe ou das peles, que são negociados localmente entre as associações de pescadores e as unidades de processamento. Ele defende que o preço pago pela Nova Kaeru é alto em comparação com outros couros no mercado, e que a concorrência vem da Bolívia, onde o pirarucu é considerado um peixe invasor e a pesca acontece durante o ano todo, com preços abaixo do que a empresa trabalha.

Em nota, a Nova Kaeru afirma que sempre defendeu a remuneração justa, que o preço da pele é superior ao da carne, e que a empresa investe no processamento e no mercado desde o início, há mais de uma década. A empresa ressalta que não há monopólio e que os custos de logística, insumos, marketing e o trabalho artesanal justificam o valor final. A Osklen e o Instituto-E, parceiro da marca, reconhecem os desafios e destacam que cadeias complexas como a do pirarucu precisam de “ações coletivas” e políticas públicas para que os elos iniciais da cadeia consigam adquirir tecnologias de beneficiamento. Já a Piper & Skye afirma que está “profundamente comprometida com o fornecimento ético” e trabalha exclusivamente com fornecedores confiáveis.

Falta de fiscalização e contrabando

Além das desigualdades de mercado, outro problema que preocupa é a falta de controle sobre o contrabando do pirarucu. A pesca ilegal foi uma das motivações para o assassinato do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, em 2022. O chefe do Núcleo de Fiscalização da Atividade Pesqueira do Ibama, Igor de Brito, diz que a área do crime tem apreensões constantes do peixe e que, em uma das ações, cerca de uma tonelada foi recolhida. Ele reconhece a falta de “pernas” para combater toda a irregularidade.

Igor de Brito avalia que o controle da cadeia produtiva está “muito aquém” do que o Ibama gostaria. Ele explica que, quando o peixe é fracionado, o controle se perde, já que o sistema que acompanha a cadeia é precário. A investigação tem que ser feita por etapas, da loja ao pescador. Fernanda Alvarenga, autora do estudo sobre o mercado, alerta para a falta de fiscalização nos rios e nos frigoríficos e afirma que “com tanto peixe ilegal sendo capturado, alguém está recebendo, processando, comprando esse peixe e essa pele”.