
O Rio Doce, uma década após o desastre de Mariana, segue em uma lenta e dolorosa recuperação. Quase 10 anos depois do rompimento da barragem de Fundão, a tragédia que abalou o país ainda deixa marcas profundas na vida das comunidades, como a de Regência, no Espírito Santo. A lama, que em 2015 desceu por todo o leito do rio, continua presente. É o que mostram estudos e, principalmente, a percepção de quem vive e convive com o Rio Doce.
A tragédia começou no dia 5 de novembro de 2015, quando a barragem da Samarco, uma joint venture da brasileira Vale e da australiana BHP, se rompeu, matando 19 pessoas e deixando duas desaparecidas. Uma enxurrada de rejeitos de mineração varreu o Rio Doce e, dezesseis dias depois, chegou à sua foz. A DW, que visitou a região de Regência em julho, constatou que os impactos ainda são visíveis e dolorosos para os moradores. O turismo, impulsionado pelo surfe, não se recuperou totalmente, e a pesca, que era o sustento de muitas famílias, foi interrompida. “Regência não voltou ao que era antes do desastre de Mariana,” é uma frase que ecoa constantemente entre os moradores.
O pescador Clavelanio Peçanha, 66 anos, conhecido como seu Preto, navega hoje pelo rio não para pescar, mas para transportar pesquisadores. Ele descreve a cena em que a comunidade aguardava a chegada da lama. “Quando rompeu a barragem, todo mundo ficou esperando a lama chegar. Tinha gente chorando, dizendo que o rio acabou. Ficou dessa cor aqui”, disse ele, apontando para uma boia laranja. A percepção de seu Preto, que diariamente vê a lama no fundo do rio, é confirmada pela ciência.
A contaminação crônica e a resiliência do rio
De acordo com um relatório do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA), executado pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), parte dos rejeitos, chamados de Material Ligado ao Desastre (MLD), ainda permanece no rio e no fundo do mar. Segundo Fabian Sá, professor de oceanografia da Ufes, a tragédia pode ser dividida em duas fases: a aguda, marcada pelo impacto físico e pela morte de peixes por sufocamento, e a crônica, caracterizada pela contaminação contínua que persiste até hoje.
“Hoje ainda estamos nesse período crônico, mesmo dez anos depois. Obviamente que, ao comparar com o início, houve uma melhora ambiental. Naturalmente o sistema vai se recompondo, tem toda uma resiliência ambiental. Mas voltou ao que era antes? Ainda não”, avaliou Sá.
O professor explica que o MLD, que está no fundo do rio e do mar, ressurge quando há chuvas fortes ou mar agitado, comprometendo a qualidade da água e, consequentemente, a vida de peixes, tartarugas e até botos. Os pesquisadores encontraram peixes com larvas deformadas e registraram um aumento de fibropapilomatose em tartarugas, uma espécie de verruga causada por tumores.
Conflitos, luto e busca por reparação
Para o educador ambiental Carlos Sangália, o desastre gerou um processo de luto na comunidade. “Você perde um ente querido, fica externado na hora. Depois vem a aceitação ou não, depois vem o luto. A comunidade passou por todo esse processo”, descreveu. Em 2016, foi criada a Fundação Renova para efetuar as reparações e compensações, mas o processo gerou conflitos. Muitos moradores, como a presidente da Associação do Comércio de Regência, Luzia da Silva Brumana, se sentem injustiçados. “Fico indignada. Do lado da minha casa, uma mulher ganhou uma indenização de R$ 419 mil. Nem pousada ela tem, é uma casa abandonada”, desabafou.

A Comissão de Atingidos de Regência, por sua vez, aponta discriminação, especialmente contra as mulheres, que foram colocadas como dependentes de seus pais ou companheiros. “A maior parte das indenizações e dos auxílios financeiros foram concedidos aos homens, e as mulheres foram colocadas nos cadastros como dependentes”, criticou a advogada Dyeniffr Correia de Oliveira, integrante da comissão.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou em julho o Programa de Transferência de Renda para os atingidos, contemplando pescadores e agricultores. O programa faz parte do chamado Novo Acordo do Rio Doce, que prevê um repasse de 100 bilhões de reais das mineradoras para ações de recuperação e indenização. No entanto, a comissão de atingidos critica o programa por não contemplar comerciantes e artesãos, que ainda recebem auxílios.
O renascimento e a esperança

Em meio à luta por reparação, histórias de recomeço inspiram. O ex-pescador Tunay Souza Oliveira, 31 anos, que chegou a pensar que sua vida havia acabado, reinventou-se na apicultura. Ele participou de oficinas oferecidas pela Associação dos Meliponicultores do Espírito Santo, que recebeu doações da banda Pearl Jam. Hoje, vive do mel que produz e do turismo em seu espaço. “Percebi que com as abelhas foi um reencontro com a natureza, porque as abelhas se conectam com a natureza o tempo todo”, afirmou Tunay, que chamou seu produto de Watu, o nome do Rio Doce na língua indígena.
Enquanto isso, a comunidade segue em busca de soluções e novas perspectivas. A falta de atividade afeta a saúde de ex-pescadores, como José Cordeiro Ribeiro, 63 anos, que credita à inatividade a necessidade de colocar um marca-passo no coração. O surfista Robson Barros da Rosa, o Pontinha, que viu seu negócio fechar, diz que os surfistas deveriam ser reconhecidos como atingidos, já que, “depois dos peixes, quem mais está na água são os surfistas”.
Para seu Preto, a esperança de voltar a pescar é pequena. “Rapaz, está meio difícil. Para limpar o rio vai uns 30, 40 anos, se alguém fizer alguma coisa. Estou com 66 anos”, disse, com um sorriso melancólico. “Vai ser difícil”.