Lucius de Mello


“— Após vossa elevação ao papado, em tudo se pode acreditar…”
(Balzac, O Elixir da Longa Vida).

Como leitores entusiastas, apressados em saber o final de um livro envolvente, os olhos do mundo se voltam à Capela Sistina. Se o Conclave decidir pela ampliação e continuidade do pensamento de Francisco, rumo a uma possível revolução na espiritualidade cristã, tenho que apontar: tanto Jorge Mario Bergoglio como os 133 cardeais que protagonizam esse momento histórico não foram os primeiros a refletir sobre a necessidade de uma profunda transformação nos valores morais e religiosos da Igreja. No século XIX, revoltado com o comportamento das autoridades eclesiásticas ao longo da História, o francês Honoré de Balzac fez graves críticas à Igreja Romana. Por isso, foi censurado e passou a ser considerado um escritor herege. Dezoito de suas obras foram condenadas quatro vezes pelos censores do Index, o catálogo de livros proibidos pela Santa Sé.
Balzac não se cansou de sugerir que Roma havia se afastado do Cristo e precisava retomar, urgentemente, os ensinamentos do Cristianismo primitivo. Ele tinha repertório para tanto. Dos oito aos quatorze anos de idade, foi interno no colégio dos padres Oratorianos de Vendôme e teve a Igreja Romana como principal educadora. Não por acaso, povoou sua obra-prima, A Comédia Humana, com uma grande população de padres, bispos, cardeais e Papas.
Em O Elixir da Longa Vida (1830), cuja trama transcorre em Ferrara, na Itália, uma pequena cidade a apenas 400 quilômetros de Roma, o narrador balzaquiano iguala os atos religiosos aos atos libertinos: “Naquela adorável Itália, a libertinagem e a religião se casavam tão bem naqueles tempos que a religião era ali uma libertinagem e a libertinagem uma religião!”. Para escrever esse conto, traduzido pela primeira vez no Brasil por João Henrique C. Lopes, Balzac se inspira em fatos reais e revela segredos da vida intima do Papa Júlio II, que comandou a Santa Sé de 1503 a 1513, período no qual começaram as obras da Basílica de São Pedro. Também foi o mediador dos acordos que resultaram na assinatura do Tratado de Tordesilhas. As informações anunciadas pelo romancista podem ser originárias de livros, jornais ou de conversas com amigos. Balzac não cita sua fonte.
Em certo momento da narrativa, ao conversar com um aristocrata italiano, o Papa Júlio II comenta sobre a construção da Basílica e faz uma confidência: “São Pedro é o homem de gênio que nos constituiu o nosso duplo poder […] merece este monumento. À noite, porém, penso amiúde, que um dilúvio passará a esponja sobre isso, e será preciso recomeçar”. Por que Balzac quis inserir um Papa real na sua ficção? Por que insinuou que Júlio II tinha medo de que Deus, enfurecido, enviasse um novo dilúvio? Será que ele se sentia culpado e ameaçado? Balzac acreditava que sim. Seu narrador expõe a intimidade alegre do Papa Júlio II, trezentos e dezessete anos após a morte do Pontífice.
Ao revelar que o líder supremo da Igreja frequentava festas na “casa de Rafael”, o pintor renascentista, e na “Villa Madama”, primeira vila suburbana de Roma, e ainda que, “numa orgia, La Rovere” (nome de família de Júlio II), podia-se desmentir as profecias do fim do mundo citadas na Bíblia, o narrador esclarece a suposta preocupação demonstrada pelo Santo Padre quando ele diz temer um novo dilúvio. Considerando os comentários do narrador, Júlio II, consciente dos seus atos ímpios, pressentia que poderia ser punido por Deus a qualquer momento. Sobre as aventuras profanas do Papa pela noite de Roma, há uma cena que escancara a ironia de Balzac ao expor ainda mais a privacidade de Sua Santidade.
Depois de discutir sobre como envelhecer na fé cristã, o amigo do Pontífice, revoltado com a resposta que recebe dele, diz a Júlio II: “— Após vossa elevação ao papado, em tudo se pode acreditar…”. Júlio II não manifesta nenhuma reação a essa opinião do amigo e o convida para ver as obras da Basílica de São Pedro.
Por esse e outros episódios, Balzac não hesitava em criticar e ironizar o comportamento clerical: “[…] venerem-me! Sou papa!”, diz o dândi e poeta Raphaël de Valentin, herói de A Pele de Onagro. Nesse mesmo romance, Balzac faz das figuras da prostituta e da cortesã metáforas para a Igreja Católica. Na cena da orgia no bordel de Aquilina, a meretriz em fim de carreira se inspira nos Sumos Pontífices para explicar a Raphaël e aos amigos a origem do seu nome: “Assim como os papas adotam nomes novos ao se elevarem acima dos homens, também eu tomei outro ao elevar-me acima de todas as mulheres”.
No conto Jesus Cristo em Flandres (1831-1845), o escritor imagina uma segunda vinda, sem sucesso, do Cristo à Terra, e proclama o apocalipse da Igreja Romana. O julgamento do narrador é implacável: “Infeliz, por que te prostituíste aos homens? Na idade das paixões, enriquecida, esqueceste tão pura e meiga mocidade, teus sublimes devotamentos, teus hábitos inocentes, suas crenças fecundas e abdicaste teu poder primitivo, tua supremacia toda intelectual pelos poderes da carne […] cintilaste com teus diamantes, com teu luxo e tua luxúria […] Foste uma Messalina…”.
Porém, nem as palavras duras contra a Igreja Católica e as condenações do Index impediram que, em 1846, Balzac fosse recebido, em Roma, pelo Papa Gregório XVI. Sobre a audiência com o Sumo Pontífice, o escritor relatou numa carta a sua irmã Laure Surville: “Fui recebido com distinção por nosso Santo Padre e você dirá à minha mãe que ao me prostrar aos pés do pai comum dos fiéis cujo chinelo hierárquico foi beijado por mim…”. Na mesma carta, Balzac relata que teria recusado um segundo encontro com o Papa porque não tinha mais tempo para permanecer na Itália. A reunião de Balzac com Gregório XVI é citada pelo biógrafo Roger Pierrot e pelo pesquisador Jean-Baptiste Amadieu.
Independente do nome escolhido neste Conclave, esses fragmentos da obra balzaquiana nos mostram que não é de hoje que pensadores apontam a necessidade de a Santa Sé renovar a sua postura para uma condução mais humanista do seu rebanho de fiéis. O escritor põe abaixo a cruz e extermina a velha e corrupta Igreja Católica. Tudo sem perder a esperança na ressurreição da genuína Santa Igreja, aquela que era defendida e idealizada em sua mente tão contraditória e realista.

*Lucius de Mello é doutor em Letras pela USP e Sorbonne Université-Paris. Autor da tese A Bíblia segundo Balzac: Deus, o Diabo e os heróis bíblicos em A Comédia Humana. Jornalista, escritor e finalista do Prêmio Jabuti em 2003*