Objetos feitos de barro pelos awará, tradição milenar no Psrque Nacional do Xingu. (Reprodução: Redes Sociais)

Uma arte que atravessa o milênio, moldada com barro, memória e resistência, está em risco. A cerâmica tradicional do povo Waurá — ou Wauja — que habita o Parque Nacional do Xingu, em Mato Grosso, enfrenta hoje um inimigo invisível e crescente: a mudança climática.

Segundo a tradição, foi a entidade Kamalu-hái, uma cobra-canoa mítica, que trouxe aos Waurá os primeiros artefatos cerâmicos. Ao partir, deixou montes de argila às margens do rio, permitindo que o povo aprendesse a moldar potes, panelas e objetos rituais. Desde então, esse saber tem sido passado de geração em geração, principalmente pelas mulheres.

Mas esse conhecimento ancestral, guardado há mais de mil anos, está ameaçado. O motivo? A escassez de um ingrediente essencial: o cauxi, uma espécie de esponja de água doce que cresce no fundo dos rios durante as cheias. Sem ele, o barro racha, e as peças não resistem.

“A gente pega o barro e também o cauxi. O barro, sozinho, não se forma. Se a gente só usar o barro, vai rachar tudo”, explica Yakuwipu Waurá, ceramista, professora e liderança indígena da aldeia Piyulewene. “O cauxi se reproduz enquanto o rio fica cheio. Ele vai crescendo e, depois, morre. Morre sozinho.”

Nos últimos anos, as cheias têm sido mais curtas e irregulares. O cauxi, que antes brotava por até cinco meses, agora tem apenas três para se desenvolver. “Ele não cresce mais”, lamenta Yakuwipu. A produção de panelinhas foi interrompida, e o cauxi precisou ser buscado em outros locais — o que encareceu o trabalho e dificultou a continuidade da tradição.

Além da cerâmica, a produção de alimentos também foi afetada. “Em 2023, não conseguimos plantar uma grande escala de mandioca. Eu replantei três vezes, e a mandioca cresceu toda pequena. E a gente não conseguiu plantar milho, perdemos todas as sementes”, contou a ceramista em entrevista à Agência Brasil.

A cerâmica Waurá não é apenas um objeto. É símbolo de identidade, memória e conexão com a natureza. “Todas as peças que a gente produz são relacionadas aos materiais que estão em volta da gente, como os animais, os pássaros e os peixes. Além disso, [as cerâmicas] são pedaços de nossas histórias”, afirma Yakuwipu. “Cada pintura que fazemos, por meio dessas linhas, nos mantêm conectados ao passado, ao presente e ao futuro.”

Na última semana, ceramistas Waurá estiveram em São Paulo para encontros e oficinas. Aproveitaram para fazer um alerta: a crise climática não afeta apenas o clima — ela ameaça culturas inteiras. “Nunca imaginamos que isso afetaria a produção de panelinha. A gente sempre se preocupou se esse conhecimento se perderia com o tempo. Mas nunca pensamos que chegaríamos a esse momento de sermos afetados pelas mudanças climáticas”, disse Yakuwipu. “O povo Waurá vive do que a natureza oferece. Só que a gente está pagando o preço e as consequências do mal que os outros fazem à natureza.”

A expectativa agora se volta para a COP 30, Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, que será realizada em Belém, de 10 a 21 de novembro. Para Yakuwipu, é essencial que os povos indígenas sejam ouvidos. “Os xinguanos precisam ser consultados sobre todas as obras que vão ser construídas em volta do Xingu. […] Para evitar os desastres ambientais, é preciso que as autoridades nos respeitem, porque o rio e a floresta respiram como nós.”

Karina Araújo, analista do Programa Xingu do Instituto Socioambiental, reforça: “Se você vai fazer um empreendimento sem ouvir os povos indígenas, você vai afetar não só os povos indígenas, você vai afetar todo o entorno e as gerações futuras.”

A cerâmica Waurá é mais do que arte. É resistência, é história viva. E, como alerta Yakuwipu, “infelizmente, vocês não cuidam [do meio ambiente]. Vocês só abusam da natureza.”

📍 A COP 30 será um momento decisivo. Ou o mundo escuta os povos da floresta, ou corre o risco de silenciar tradições que resistem há milênios.