Laira Vieira

Laira Vieira*

Quando a sofisticação serve de cortina para os jogos mais viscerais de poder e desejo, Saltburn (2023) irrompe como uma sátira elegante e cruel, desvelando os nervos expostos da elite britânica com uma estética hipnótica e uma narrativa que flerta com o grotesco. Dirigida por Emerald Fennell (Bela Vingança, A Garota Dinamarquesa), a obra é uma dança macabra entre obsessão, privilégio e identidade, encenada sob o verniz reluzente da aristocracia inglesa.

A trama acompanha Oliver Quick, interpretado com inquietante intensidade por Barry Keoghan (O Sacrifício do Cervo Sagrado, Os Banshees de Inisherin), um estudante bolsista em Oxford que, à margem do universo dos ricos e belos, é atraído para o mundo de Felix Catton, vivido por Jacob Elordi (Euphoria, Priscilla), um aristocrata carismático e enigmático. Convidado para passar o verão na opulenta propriedade da família Catton — Saltburn — Oliver mergulha em um ambiente onde as aparências mascaram segredos sombrios e as relações se constroem com base em jogos de dominação e manipulação.

O longa é uma autópsia requintada das estruturas de classe e das dinâmicas de poder que regem as relações sociais. Através da jornada de Oliver, a narrativa evidencia as fissuras de uma sociedade que, sob a superfície polida, abriga desejos inconfessáveis e uma luta implacável por status e visibilidade. A mansão Saltburn, com sua arquitetura monumental e jardins meticulosamente desenhados, torna-se um personagem em si — um labirinto de promessas e armadilhas, onde cada ângulo é uma performance e cada gesto, uma transação simbólica.

Visualmente, a película hipnotiza. Sua paleta saturada e os enquadramentos de simetria opressiva evocam um neobarroco delirante, onde o belo e o perturbador se entrelaçam em tensão permanente. A direção de Fennell é meticulosa — quase sádica em sua precisão — conduzindo o espectador por um percurso moralmente ambíguo. As atuações são um espetáculo à parte: Keoghan transita entre a fragilidade e a manipulação com maestria, enquanto Elordi encarna o privilégio hereditário com um tédio lascivo, herdeiro da impunidade de quem nunca precisou desejar.

Saltburn também se conecta, de forma aguda, com as inquietações do nosso tempo: a performatividade das relações sociais, a fluidez identitária e a voracidade da validação digital. Vivemos a era das personas, onde o real é constantemente encenado — e a obra nos obriga a perguntar: quem seríamos se não estivéssemos sendo observados? E, talvez mais perturbador ainda: o que estamos dispostos a sacrificar por pertencimento?

O desfecho do longa-metragem é um espiral narcísico de perversidade e triunfo. A narrativa se fecha como uma armadilha — bela, silenciosa e brutal. Não há redenção, apenas a constatação de que, em um mundo regido por aparências, a autenticidade pode ser não apenas inútil, mas perigosa. Como advertiu Nietzsche: “Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro.” E talvez o maior triunfo de Oliver tenha não sido ser aceito — mas ter devorado, silenciosamente, todos ao seu redor.

Saltburn não alivia. É um punhal que desliza com a elegância de uma dança sensual, mas perfura como um segredo revelado ao mundo. É um filme que não se contenta em entreter, mas que instiga, inquieta e crava seu punhal com precisão. Não é apenas uma história sobre obsessão e privilégio: é um retrato perversamente belo de uma era narcisista — onde até a empatia é performática e a ascensão social, uma guerra disfarçada de sedução.

*Laira Vieira é Tradutora, Crítica Cultural, e formada em Ciências Econômicas pela UFSM. Autora